As Lacunas da Ética
São nos momentos mais desafiadores e turbulentos de nossas vidas que nossos mais profundos princípios são testados.
O livro “O Amigo Alemão” de Adam Marcos e Larry Alexander, conta a história de dois pilotos em lados opostos na Segunda Guerra Mundial, Franz Stigler, piloto de caça de um Masserschmitt Bf-109, e Charlie Brown, jovem piloto americano de um bombardeiro B-17. As trajetórias de ambos podem nesse momento serem deixadas de lado, pois o principal fato e objeto do livro ocorreu no dia 20 de dezembro de 1943.
Charlie voltava de uma missão de bombardeio na Alemanha e estava na altura da cidade de Oldenburg, numa tentativa de voltar para a Inglaterra, em condições extremamente precárias, dirigindo-se para a costa onde enfrentaria a Muralha do Atlântico, a mais mortífera linha de defesa antiaérea alemã, onde nenhum trecho deixava de ser coberto pela pesada artilharia.
O B-17 oscilava em uma altura de 200 a 300 metros do solo, fumaça saindo de seus motores, o nariz destruído, o avião perfurado de balas e estilhaços, as estações de metralhadoras emperradas, vários tripulantes mortos ou feridos. Era uma tentativa desesperada de voltar.
Ao passar por um campo de pouso onde estavam Franz e seu caça, este imediatamente decolou para perseguir uma presa fácil e abatê-la. Ao se aproximar do B-17, segundos antes de abrir fogo, percebeu o desespero da tripulação e nenhuma atitude de defesa. Voou lado a lado testemunhando a busca de sobrevivência e o avião mal se aguentando no ar. De dentro do B-17 os tripulantes olhavam estarrecidos para o carrasco que ali terminaria com as suas vidas. Franz decidiu emparelhar o seu caça ao B-17 e “escolta-lo” até o mar aberto.
Os operadores e soldados da linha de artilharia, viram estupefatos um avião inimigo voando em total sincronia com um dos seus e não podiam abrir fogo, pois atingiriam o caça, além de não terem o menor entendimento do que estava acontecendo. Alguns quilômetros mais para frente, ambos aviões se separaram para se verem novamente (com as suas famílias) num encontro cheio de emoções, cinquenta anos depois, organizado pelos autores do livro.
O ponto crucial de tudo foi o pensamento que teve Franz ao perceber o que se passava com o avião inimigo: “Isto não vai ser uma vitória para mim. Eu não vou ver isto em minha consciência pelo resto da vida.”.
Situações de alta pressão nos testam em sua plenitude. Com a prática da ética nos negócios é a mesma coisa. A decisão de se fazer algo impróprio ou não, já deve ter sido tomada antes da situação em si. Imagine se o piloto do caça tivesse que abrir o manual naquele momento, para saber o que fazer. Os treinamentos nos códigos de ética das empresas deveriam ser úteis para esclarecer detalhes, pois os princípios deveriam vir já com os indivíduos. Como uma companhia não consegue avaliar os princípios dos funcionários e corre o risco de contratar pessoas com certas lacunas, a única forma de se resolver é com um treinamento intenso e obter assinaturas de compromisso aos códigos de ética.
Observei no decorrer dos anos que certos indivíduos têm “lacunas” em seu comportamento ético, ou seja, julgam-se corretos, honestos em muitas áreas, porém permitem que haja uma lacuna em seu conceito de ética. Vou alguns exemplos de algumas dessas situações.
A “Lacuna da Racionalização ” é uma destas lacunas, quando a pessoa afirma que “... fiz o que fui mandado fazer¨ ou “...buscamos nos adaptar às práticas locais”, ou até mesmo “...você não está errado seguindo as regras da companhia”. O ponto é que a pessoa se torna um verdadeiro “camaleão”, se adaptando às práticas da empresa. Se estiver em uma companhia sólida, a ética é sólida, se isto mudar, muda também o comportamento.
Outra situação interessante é a “Lacuna pelos Resultados”, ou seja¨...seguimos as regras desde que não afete o ¨bottom line”. Esta busca desenfreada pelos resultados são uma barreira para não haver transparência com clientes, ou mesmo assumir a responsabilidade por problemas causados. A crise da bolsa de valores norte-americana de 2008 está repleta de exemplos de práticas financeiras focadas exclusivamente nos resultados. Com certeza, se Fritz Stigler estivesse em busca da glória dos resultados, não hesitaria em derrubar o B-17 e fazer mais uma marca em seu avião, referente a cada um dos inimigos derrubados.
Lembro-me de uma experiência visitando uma grande incorporadora e construtora de São Paulo, em razão de uma das escadas rolantes instaladas em um shopping nunca funcionou direito. Como eu era novo na posição, o cliente preparou-se para a reunião com dois advogados e uma pilha de documentos. Deixei-o falar por quase meia hora e percebi que seus argumentos eram de boa fé e inquestionáveis. Quando terminou, eu simplesmente disse “OK, vamos trocar a escada”. Após alguns longos segundos de pesado silêncio que provocaram a minha afirmativa, o cliente disse: “OK, esta reunião está terminada”. O gerente daquela conta estava me acompanhando e quando terminamos, para sua surpresa, foi convidado para outra reunião que se iniciava...para discutir um novo pacote de equipamentos. Os clientes sabem quando não somos transparentes como também sabem compreender e nos ajudar com os problemas, se formos realmente transparentes. Muitos achariam perfeitamente ético economizar dinheiro da companhia, com esta perigosa lacuna dos “resultados”.
Uma lacuna igualmente grave, é a “Lacuna da Solidão”, ou seja, pessoas e companhias têm comportamentos contraditórios, buscando anunciar e praticar a “ética pública” – em tudo que é visível e anunciado, o comportamento é correto, já na solidão da privacidade, tudo acontece: relatórios de despesas adulterados, balanços são “adaptados”, praticam-se assédios, falam livremente com a concorrência, não são transparentes naquilo que o cliente não vê. Muitos pensam que podem construir muros entre as várias áreas de atuação e ter comportamentos diferentes. No entanto, todas as áreas de nossa vida são “vasos comunicantes” e frequentemente uma área contamina a outra.
Muito semelhante à ultima, porém não é igual é a “Lacuna Interna”. Conheci companhias de grande porte onde as políticas externas de ética das áreas de vendas, compras, serviços, relações com o governo, etc, são seguidas à risca, mas são permissivas internamente com seus funcionários em relação às leis trabalhistas, assédios, procedimentos suspeitos de promoções de pessoas, danos ao ambiente e à sustentabilidade e na falha com os compromissos com a comunidade. É a síndrome do “faça o que eu falo, mas não faça o que eu faço” a fim de manter as aparências externas e ter a ¨fachada¨ de uma empresa ética.
Finalmente vale a pena comentar a “Lacuna de Liderança”. Poderão haver ocasiões em nossas carreiras em que as notícias que levamos com as consequências de um comportamento ético não são muito boas para aquele que as recebe. Podem afetar o seu bônus, o preço da ação na bolsa ou mesmo o seu prestigio. Vem então a síndrome de “matar o mensageiro”, sem maiores investigações. Gosto da expressão usada nos Estados Unidos dos “whistle blowers”, ou aqueles que “soam o apito”, trazendo muito desconforto para todos que “ouvem o apito”. Nesses momentos poderão vir as maiores pressões sobre os seus próprios princípios, mas se isto acontecer, não se abata. Aquele não é o lugar ou as pessoas com quem você deva trabalhar. O piloto alemão enfrentaria o pelotão de fuzilamento se seus compatriotas reconhecessem o avião, no entanto fez o que deveria fazer, fiel aos seus princípios.
O comportamento ético não pode der lacunas. Deve ser consistente em todas as áreas de trabalho e também pessoais. Significa um compromisso de vida e de comportamento e o treinamento das práticas dos códigos de ética serão meros complementos de uma postura pessoal. Esta postura vem de princípios e é difícil defini-los, pois vêm de berço, de criação, dos exemplos das pessoas que admiramos, do desenvolvimento através dos anos da noção do certo e do errado que acabam se refletindo nas ações do dia a dia.
Nos dilemas ou nos momentos de grande pressão, lembre-se de que nada substitui o sentimento de paz ao deitar a sua cabeça no travesseiro e siga o pensamento de Franz Stigler : “Eu não vou ver isto em minha consciência pelo resto da vida.”